Da sacada da sala, uma mulher de 37 anos observa o vaivém de uma escavadeira que mexe a terra na parte de trás de sua casa, no Parque Paulista, em Franco da Rocha. Há um ano, em 30 de janeiro de 2022, do mesmo lugar, ela e a família viam bombeiros e voluntários cavando o local com pás e até com as mãos em busca de sobreviventes da tragédia que matou 18 pessoas, quando um morro veio abaixo.
Com a forte chuva que caía na região, lama e pedras desceram e atingiram imóveis pelo caminho, surpreendendo pessoas que ainda dormiam por volta das 6h de um domingo.
A mulher, uma cozinheira que pede para não ter o nome divulgado, conta que desde então toma remédios quando chove.
A família dela, assim como dezenas de outras vizinhas, continua morando em imóveis interditados próximos ao local do desastre. Na frente dessas casas há um “X” na parede, pintado pela Defesa Civil municipal. É um sinal de que ali há riscos e de que o imóvel deveria estar desabitado.
A justificativa para a permanência é comum. O auxílio emergencial para moradia, de R$ 608,94, bancado pela prefeitura, é insuficiente para pagar aluguel na região, enquanto não saem as 692 unidades habitacionais prometidas para atendimento exclusivo a moradores de áreas de risco de Franco da Rocha. As obras devem começar em breve.
Um mês depois de se mudar às pressas por exigência da Defesa Civil, Silvania Pereira dos Santos, 66, voltou para a casa onde mora há 31 anos com o marido, João José da Silva, 62, na rua Amparo, continuidade da rua São Carlos (onde o morro veio abaixo).
Voltaram, ela diz, porque a cadeira de rodas do marido não cabia no banheiro da única casa que conseguiu pagar com o auxílio-aluguel. Por causa de um AVC, há três anos ele tem limitação de movimentos. “Chegaram a falar para dar banho nele na cozinha”, diz ela, que espera que os imóveis prometidos tenham acessibilidade.
Na parede da frente também há um “X”. O problema, diz a mulher, é a casa vizinha, com grandes rachaduras em quase todos os cômodos, inclusive no muro colado ao quintal da idosa.
Na quinta (26), Nivaldo Ferreira Maciel, 68, o dono da casa vizinha, foi até o imóvel com a mulher, Maria do Socorro Ferreira, 62, ver se as rachaduras haviam aumentado, pegar a conta de luz e checar se nada havia sido roubado. “Como entraram aqui, levei portas e janelas embora antes que pegassem”, diz. Com medo, o casal se mudou dali.
Sentada em uma cadeira na calçada ao lado, Maria de Lourdes Souza, 57, diz evitar ir até o local do acidente, pela lembrança dos vizinhos que morreram. “Hoje durmo com um olho aberto e outro fechado.”
Ana Carolina Alencar Nunes, secretária de Habitação e Regularização Fundiária de Franco da Rocha, diz que a fiscalização é rígida, mas admite dificuldade para controlar a situação. “Temos pedido sempre para as famílias não retornarem às suas casas.” Quem volta ao imóvel interditado perde o direito ao auxílio-aluguel.
Uma obra de contenção começou a ser feita no lugar onde antes estavam as casas atingidas —cerca de 70 famílias tiveram seus imóveis destruídos pela lama ou demolidos depois. A obra, feita em parceria com a Defesa Civil estadual, deve ficar pronta em abril.
Alguns imóveis foram interditados por causa do risco de rachaduras devido ao trabalho das máquinas. É o caso da residência da cozinheira.
As causas da avalanche ainda são investigadas. Segundo a secretaria municipal, o local era uma área de risco baixo, de nível 2, em uma escala que vai de 1 a 4.
“A parte onde ocorreram as mortes não era nem mapeada como de risco”, disse a secretária Nunes sobre 192 áreas de riscos mapeadas no município pela UFABC (Universidade Federal do ABC), em 2021.
O professor Fernando Nogueira, coordenador do LabGris (Laboratório de Gestão de Riscos da UFABC), afirma que a estrutura geológica da encosta do morro se rompeu. “Quando a gente fez o mapeamento, avaliamos que havia pouca possibilidade de ruptura, apesar de o local ser muito íngreme, porque tinha pouco material solto.”
Uma possibilidade estudada é que tenha ocorrido ruptura após infiltração volumosa de água nas estruturas da rocha, a partir de problemas na infraestrutura de microdrenagem das ruas da área atingida, como tubulações e bocas-de-lobo, explica.
O geólogo diz que, depois da tragédia, seu grupo de trabalho passou a não olhar apenas as rochas, mas toda a infraestrutura urbana do local. “A culpa não é da população que jogou água, mas da deficiência da infraestrutura.”
O local é uma área para regularização fundiária com construções irregulares, muitas erguidas há cerca de 40 anos. A prefeitura diz captar recursos para urbanizar a região, em projeto que prevê a construção de um espaço comunitário no lugar do deslizamento. Ainda não há prazos.
A prefeitura afirma, ainda, que outras 12 obras de contenção, estimadas em R$ 6 milhões, serão realizadas na cidade em parceria com o governo federal. Também lista ações assistenciais.
Dois novos piscinões estão sendo construídos em conjunto com o governo do estado, que afirma ter destinado mais de R$ 108 milhões ao município em investimentos diretos, convênios, repasses e ações sociais e de ajuda humanitária.